Clareza das Escrituras


Qualquer pessoa que se dispõe a ler e estudar a Bíblia reconhece que algumas partes são muito simples de entender, a linguagem é suave e o texto segue com fluidez. Por outro lado, temos partes da Bíblia, que são no mínimo enigmáticas e precisamos admitir que nem todas as partes podem ser compreendidas facilmente. Não obstante, seria um erro pensar que a maior parte da Bíblia é difícil de entender, ou que somente os estudiosos podem compreendê-la corretamente. Qualquer pessoa pode entender e interpretar a Bíblia corretamente. É exatamente isso que Pedro fala em sua carta:


2 Pedro 3.15 Tenham em mente que a paciência do nosso Senhor significa salvação, como também o nosso amado irmão Paulo escreveu a vocês, com a sabedoria que Deus lhe deu. 16Ele escreve da mesma forma em todas as suas cartas, falando nelas destes assuntos. As suas cartas contêm algumas coisas difíceis de entender, as quais os ignorantes e instáveis torcem, como fazem também com as demais Escrituras, para a própria destruição deles.


Pedro reconhece a dificuldade de entender alguns textos do apóstolo Paulo, entretanto, sua advertência vai para os “ignorantes e instáveis” que “deturpam as Escrituras” para a sua “própria destruição”. 


Definição do termo


Wayne Grudem definiu assim o conceito de clareza das escrituras: 


Dizer que as Escrituras são claras é dizer que a Bíblia está escrita de modo tal que seus ensinamentos podem ser compreendidos por todos os que lerem buscando auxílio de Deus e dispondo-se a acatá-la. Uma vez esclarecido isso, devemos também reconhecer que muitas pessoas, mesmo o povo de Deus, de fato compreendem erradamente as Escrituras.


Podemos afirmar, que a Bíblia está escrita de tal forma, que qualquer um pode encontrar, todas as coisas que precisa, para a sua salvação, para o crescimento na fé e na conduta diária do viver cristão. Por outro lado, deve-se reconhecer que as pessoas podem interpretar o texto bíblico de forma incorreta. 


Karl Barth, faz uma belíssima explicação do conteúdo do texto bíblico: 


Não é o correto pensamento humano sobre Deus que forma o conteúdo da Bíblia, mas o correto pensamento divino sobre os homens. A Bíblia não nos conta como nós devemos falar para Deus, mas o que Ele diz para nós; não como encontraremos o caminho para Ele, mas como Ele tem visto e encontrado o caminho para nós; não a correta relação a ele, mas o pacto que ele fez com todos os que são filhos espirituais de Abraão e que Ele selou de uma vez por todas em Jesus Cristo. É isto que está na Bíblia.


Por isso é que o conteúdo das Escrituras não poderia ser indecifrável ou mesmo decifrado apenas por um conjunto de pessoas especiais. Também, não poderia conter códigos secretos, invalidando assim, todo o propósito de sua existência, que é revelar o Deus que fez aliança com “os filhos espirituais de Abraão”.


Fundamentação bíblica


Quando lemos as Escrituras, sempre nos deparamos com o fato de que o texto bíblico é claro e que todos os crentes têm a responsabilidade de ler e compreender a sua mensagem. 


Moisés recomendou:


Deuteronômio 6.6 Que todas estas palavras que hoje lhe ordeno estejam no seu coração. 7Ensineas com persistência aos seus filhos. Fale sobre elas quando estiver sentado em casa e quando andar pelo caminho; quando se deitar e quando se levantar.


Todo o povo deveria ser capaz de ler, compreender, interpretar e explicar para os seus filhos as palavras ditas por Moisés. 


O salmistas declara:


Salmo 119.130 A explicação das tuas palavras ilumina e dá discernimento aos ingênuos.


Salmo 19.7 A lei do Senhor é perfeita e revigora a alma. Os testemunhos do Senhor são dignos de confiança e tornam sábios os ingênuos.


Até os “ingênuos” (no sentido de juízo e não de capacidade intelectual) podem entender e aplicar o texto bíblico. Nenhum crente pode julgar-se inferior a ponto de não compreender as escrituras e com isso adquirir sabedoria para o seu próprio crescimento e também para a edificação da igreja. 


Jesus jamais disse que qualquer texto das Escrituras do A.T., mesmo os mais complexos, como a criação, o dilúvio ou a abertura do mar vermelho, fosse obscuro. Pelo contrário, ele tratou de dirimir as dúvidas, apelando para a boa interpretação do texto bíblico, como, por exemplo, na discussão com os fariseus a respeito do divórcio.


Mateus 19.3 Alguns fariseus aproximaramse dele para pôlo à prova e perguntaramlhe: ― É permitido ao homem divorciarse da sua mulher por qualquer motivo? 4Ele respondeu: ― Vocês não leram que, no princípio, o Criador “os fez homem e mulher” 5e disse: “Por essa razão, o homem deixará pai e mãe e se unirá à sua mulher, e os dois se tornarão uma só carne”? 6Assim, eles já não são dois, mas sim uma só carne. Portanto, ninguém separe o que Deus uniu. 7Eles perguntaram: ― Então, por que Moisés mandou darlhe uma certidão de divórcio e mandála embora? 8Jesus respondeu: ― Moisés permitiu que vocês se divorciassem das suas mulheres por causa da dureza do coração de vocês. Mas não foi assim desde o princípio.


A discussão estava relacionada a interpretação distinta e contraditória de duas escolas rabínicas acerca do texto de Deuteronômio 24. Jesus não disse que o texto era difícil de interpretar, ou que eles não fossem capazes de interpretá-lo, Jesus disse que o coração deles era duro e por isso não compreendiam as Escrituras. A Questão não era intelectual. 


Nesse ponto, Wayne Grudem fez uma importante observação:


Numa época em que é comum as pessoas dizerem que é muito difícil interpretar corretamente as Escrituras, é bom lembrar que nos evangelhos em momento nenhum ouvimos Jesus dizendo algo como: “Percebo a raiz do problema de vocês – as Escrituras não são muito claras sobre a questão”. Em vez disso, [...] suas respostas sempre supõem que a culpa pela má compreensão de qualquer ensinamento das Escrituras não deve ser imputada às próprias Escrituras, mas àqueles que as compreenderam erroneamente ou não aceitaram o que está escrito. 


Não é diferente nas epístolas escritas para as igrejas do N.T.. Paulo supõe que seus leitores – tanto líderes, como membros – irão compreender o que ele escreve, e incentiva que suas cartas sejam enviadas a outras igrejas. 


2 Coríntios 1.13 Pois nada escrevemos a vocês que não sejam capazes de ler ou entender. Espero que, 14assim como vocês nos entenderam em parte, venham a entender plenamente que podem se orgulhar de nós, como também nos orgulharemos de vocês no dia do Senhor Jesus.


Efésios 3.4 Ao lerem isso, poderão entender a minha compreensão do mistério de Cristo.


Devemos nos lembrar, que a maioria dos leitores das cartas do N.T. eram gentios que não tinham qualquer experiência como cristãos, e  não conheciam em nada ou muito pouco da história e da cultura de Israel. Ainda assim, os escritores do N.T. não hesitaram em citar o A.T. na certeza de que seus leitores compreenderiam corretamente. 


Em outras palavras, o problema nunca esteve com as Escrituras, mas com o leitor, que poderia fazer uma interpretação equivocada do texto bíblico, ou poderia estar impedido de compreender corretamente a Palavra de Deus, pela dureza do próprio coração. 


A questão espiritual dos leitores


O que percebemos então, é que o problema não está nas Escrituras, ou mesmo na capacidade intelectual dos indivíduos, porém, na sua propensão moralmente e espiritualmente pecaminosa. Somos continuamente advertidos a respeito da limitação espiritual dos homens.


1 Coríntios 2.14 O homem natural não aceita as coisas que vêm do Espírito de Deus, pois para ele são loucura; não é capaz de entendêlas, porque elas são discernidas espiritualmente.


2 Coríntios 3.14 Na verdade, a mente deles se fechou, pois até hoje o mesmo véu permanece quando é lida a antiga aliança. Não foi retirado, porque somente em Cristo é removido. 15De fato, até o dia de hoje, quando Moisés é lido, um véu cobre o coração deles. 16No entanto, quando alguém se converte ao Senhor, o véu é retirado. 


Embora a Bíblia afirme que o que está escrito nela está escrito claramente, ela também afirma que não será entendida por quem não for “iluminado” espiritualmente. 


Até mesmo os discípulos de Jesus, em determinados momentos, mostravam incompreensão com partes do A.T. e com os ensinos de Jesus. Em certas oportunidades, os cristãos da igreja primitiva não concordaram ou compreenderam os ensinos do A.T., a ponto de ser convocado um concílio para discutir a situação dos gentios na igreja (At 15). Outro exemplo, é a discordância de Pedro e Paulo sobre o papel do judaísmo na igreja (Gl 2.11-15) e as várias exortações dos autores do N.T., tentando corrigir interpretações equivocadas do texto bíblico pelos crentes. Sem contar, o sem número de discussões teológicas que marcaram a história da igreja do decorrer dos séculos, debates importantes e outros insignificantes, que mostraram toda a nossa incapacidade diante da grande revelação de Deus.


A questão hermenêutica


De forma a auxiliar os crentes na interpretação das Escrituras, foram ressaltados os princípios gramaticais, que Wayne Grudem chamou de “aperfeiçoamento da capacidade de interpretação correta”. O termo técnico é hermenêutica, que foi definida como: “o estudo dos métodos corretos de interpretação”. Grant R. Osborne, em seu livro a Espiral Hermenêutica asseverou a respeito da matéria:


A Hermenêutica é uma ciência, uma vez que faz uma classificação lógica e ordenada das leis da interpretação. [...] a hermenêutica é uma arte, uma vez que é um conhecimento que se adquire que exige tanto imaginação quanto competência para aplicar as leis às passagens selecionadas [...] a terceira e mais importante perspectiva é a de que a hermenêutica [...] é um ato de caráter espiritual realizado na dependência da direção do Espírito Santo.


A interpretação bíblica é uma ciência, arte ou disciplina espiritual e como tal, os seus princípios, se utilizados de maneira correta podem cooperar com qualquer indivíduo, enquanto estuda a Bíblia. Três princípios podem auxiliar os leitores das Escrituras:


  1. Contexto Bíblico: como o texto se encaixa no todo das Escrituras, ou seja, o contexto sistémico teológico. 

  2. Contexto do livro: como o livro em questão se encaixa na história da redenção, ou seja, contexto histórico e cultural.

  3. Contexto do versículo: como o versículo se encaixa no assunto que o autor abordou, ou seja, contexto do texto. A intenção explícita do autor da passagem e sua construção literária. 


Portanto, todos ensinos da Bíblia são claros, passíveis de interpretação e compreensão correta, ainda assim, admitimos que as pessoas (em virtude dos próprios defeitos) compreendem de forma errada o que está claro nas Escrituras. 


Implicações práticas


Primeira implicação: Resolver questões doutrinárias e éticas.


Quando somos confrontados com questões em que há desacordo doutrinário, a clareza das Escrituras deixa evidente que isso acontece por dois motivos: 


(1) Estamos buscando fazer afirmações onde as Escrituras não fazem. O melhor a se fazer nestes casos, é admitir que Deus não deu a resposta e que portanto, devemos permitir as diferenças de ponto de vista dentro da igreja. 


(2) Podemos ter cometido erros na interpretação do texto. Estes erros podem ser causados por fatores como:


  • Aplicação incorreta da hermenêutica

  • Utilização de informações incompletas ou imprecisas

  • Por motivos éticos, como: ganância, orgulho, egoísmo 

  • Por não dedicar tempo suficiente para ler e estudar com afinco as Escrituras. 


Segunda implicação: Jamais devemos supor que somente os mais eruditos em grego e hebraico, os mega pastores, os grandes teólogos e os maiores estudiosos da Bíblia podem e são capazes de entender claramente a Bíblia. 


Isso não exclui o fato de que podemos recorrer aos especialistas de quando em quando. Deus muitas vezes usa os escritos de outras pessoas para nos auxiliar no estudo da Bíblia, mas, a clareza das Escrituras nos incentiva e desafia a fazer os nossos estudos por conta própria.


Terceira implicação: Temos muito mais pontos claros do que “incompreensíveis” nas Escrituras. 


Apesar de admitir que temos muitos pontos de discordância teológica na história da igreja, percebemos que temos muito mais pontos de convergência, em especial, nos assuntos centrais da fé cristã. Melhor dizendo, no que é essencial, todas as tradições da cristandade concordam. Porque? Por que todos leem a aceitam a mesma Bíblia e nos pontos essenciais, ela é extremamente clara.


Conclusão


Podemos dizer que a leitura, pesquisa e compreensão da Bíblia está disponível a qualquer pessoa que decide estudar as Escrituras com disposição. A revelação do caráter e da natureza de Deus, todo o seu plano de salvação e seus propósitos eternos estão registrados nas páginas da Bíblia. Tudo isso, de forma clara e objetiva. Aqueles que a leiam com sinceridade (crentes ou não), em busca de conforto, auxílio ou salvação certamente encontrarão, uma vez que, o Espírito Santo age na remoção dos efeitos do pecado e possibilita o seu entendimento. As discussões que envolvem temas secundários, são causadas por nossa incapacidade ou pelo pecado em nosso coração. 


Karl Barth, definiu bem essa verdade: 


Nós encontramos na Bíblia um novo mundo, Deus, a soberania de Deus, a glória de Deus, o amor incompreensível de Deus. Não encontramos a história de um homem mas a história de Deus! Não encontramos as virtudes dos homens mas a virtude daquele que nos chamou para fora da escuridão para sua maravilhosa luz! Não encontramos o ponto de vista humano mas o de Deus!


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