O verdadeiro gênio da reforma
16Pois não me envergonho do evangelho, porque é o poder de Deus para a salvação de todo aquele que crê, primeiro do judeu e também do grego. 17Porque a justiça de Deus se revela no evangelho, de fé em fé, como está escrito: “O justo viverá por fé.”
O texto acima pode ser considerado como o coração da Reforma protestante. Quando Martinho Lutero se deparou com essa passagem, seu coração iluminou-se e ele compreendeu o precioso ensino acerca da salvação pela fé. Depois disso, Lutero tornou-se o pregador do evangelho da graça e lutou com todas as suas forças para que essa verdade fosse ensinada em toda parte.
Reforma. Nosso mundo fala muito sobre reforma. Parece que todos nós, em um grau ou outro, desejamos reformas. Há reforma da saúde e reforma educacional. Reforma agrícola e reforma social. Reforma fiscal e certamente reforma religiosa.
A reforma lembra a ideia de progresso em direção a um resultado desejado. É uma palavra que evoca mudanças positivas. Com um uso tão difuso da palavra, no entanto, ela tende a perder sua virtude e eficácia. Quando alguém fala da Reforma Protestante, a reforma pretendida e celebrada pode ser perdida em um mar de sinônimos e ambiguidades, então sua riqueza fica diluída e confusa.
A Igreja Católica Romana também fala de reforma e reconhece sua necessidade dentro da igreja. Seu pedido de reforma é anterior à Reforma Protestante. Ainda sofrendo com o grande cisma entre oriente e ocidente em 1054, o Concílio de Constança (1414-1418) buscou uma profunda reforma na igreja. Isso não mudou nos muitos séculos desde então, e a Igreja Católica continua a pedir reformas.
Então, quando comemoramos o Dia da Reforma, o que exatamente estamos comemorando? O que diferencia a Reforma Protestante de outras reformas e reformulações? O que a diferencia da reforma que a Igreja Católica pretende e busca? Por que ainda estamos celebrando isso mais de quinhentos anos depois?
As respostas a essas perguntas revelam o verdadeiro gênio da Reforma Protestante, explica por que ela persiste através dos séculos e ainda é comemorada hoje e continuará sendo celebrada.
Retorno da Supremacia de Deus
O que vem à mente quando se considera a Reforma Protestante? Quais são as suas características distintivas? Certamente, os Cinco Solas estão no topo da lista. Somente a fé em Cristo somente pela graça, revelada somente pelas Escrituras, e somente para a glória de Deus. Talvez essas sejam as marcas mais reconhecidas da Reforma. É aqui que se encontra o gênio da Reforma Protestante? Eles são a razão pela qual a Reforma Protestante persiste por mais de cinco séculos?
Sem dúvida, o retorno a essas verdades foi extraordinário. Elas devem ser celebradas por sua clareza e pelos limites inequívocos que se estabeleceram para a fé. Não há confusão quanto à autoridade das Escrituras contra a da tradição. A salvação é definitivamente um dom da graça de Deus e não pode ser atribuída às obras. Elas não permitem ambiguidade, indiferença ou neutralidade. Elas são o retorno ao coração da fé e do evangelho bíblico.
Certamente, é correto, então, sugerir que os Cinco Solas expliquem o gênio da Reforma Protestante? Ou talvez seu gênio esteja nos grandes reformadores, como Martinho Lutero e João Calvino? Certamente a Reforma, em grande parte, deve seu sucesso ao brilhantismo desses homens.
Uma reflexão cuidadosa da Reforma, no entanto, revela que sua genialidade não reside na articulação dos solas ou na formulação de qualquer credo ou declaração doutrinária. Vai além dos reformadores e até mesmo além do mero retorno às Escrituras como a fonte última de autoridade e verdade. Vai mais fundo ainda. O gênio da Reforma está enraizado no próprio Deus.
A reforma avivou no coração dos homens a verdade da supremacia de Cristo ensinada pelo apóstolo:
Colossenses 1.15 Ele é a imagem do Deus invisível, o primogênito de toda a criação. 16Pois nele foram criadas todas as coisas, nos céus e sobre a terra, as visíveis e as invisíveis, sejam tronos, sejam soberanias, quer principados, quer potestades. Tudo foi criado por meio dele e para ele. 17Ele é antes de todas as coisas. Nele tudo subsiste. 18Ele é a cabeça do corpo, que é a igreja. Ele é o princípio, o primogênito dentre os mortos, para ter a primazia em todas as coisas. 19Porque Deus achou por bem que, nele, residisse toda a plenitude 20e que, havendo feito a paz pelo sangue da sua cruz, por meio dele, reconciliasse consigo mesmo todas as coisas, quer sobre a terra, quer nos céus.
Portanto, a reforma é um retorno a compreensão da supremacia de Deus sobre todas as coisas. É um retorno da primazia de Deus na igreja, na história e no coração do homem. É uma obra radical e reformadora realizada pelo próprio Deus todo-soberano do universo.
Deus recuperou o que era dele
Essa, no entanto, não é uma nova revelação. Não era segredo para os reformadores. Eles sabiam que ninguém poderia produzir uma reforma tão radical. Tinha que ser obra do próprio Deus. Lutero entendeu isso bem:
A igreja precisa de reforma, mas não pode ser obra de um homem - nem de muitos - antes, deve ser obra de Deus somente [...] Nenhuma espada pode invocar ou ajudar esta causa, apenas Deus pode fazê-lo, sem nenhuma intervenção humana [...] Confesso livremente, que esse empreendimento não foi de forma alguma uma ação deliberada da minha parte é um resultado puro da vontade soberana de Deus.
Lutero, apesar de ser um homem com grandes dons e uma grande mente, não poderia de forma alguma assumir um conflito dessa magnitude.
Lutero não foi o único reformador a compartilhar essa percepção. Calvino também reconheceu o alcance prodigioso da Reforma e sabia que nenhum homem poderia realizar tal feito. Ao escrever para Carlos V, Calvino deixou isso claro, dizendo-lhe que a reforma da igreja é obra de Deus e é independente da esperança e das opiniões do homem, da mesma maneira que a ressurreição dos mortos.
De fato, ninguém, nem mesmo um exército de homens, poderiam confrontar a Igreja Católica Romana, o poder e influência que ela exercia. Tinha que ser obra do próprio Deus. Exigia a vontade e a ação do Deus soberano do universo. O evangelho estava em jogo e, portanto, Deus trabalhou de maneira radical para recuperar sua palavra e sua autoridade.
O mesmo aconteceu nos tempos de Josué, Asa, Ezequias, Esdras, Neemias e os apóstolos. É o que Deus tem feito ao longo da história, e foi o que aconteceu durante a Reforma. Deus interveio para recuperar o que era dele.
O verdadeiro reformador
De fato, a Reforma Protestante dependia inteiramente de Deus. A Reforma pertence somente a Ele. Ele é o verdadeiro “reformador”. Sua grandeza não pode ser encontrada em seu brilhantismo intelectual nem em sua perspicácia teológica (presente nos reformadores). Sua grandeza é revelada em sua humildade em reconhecer a grandeza de Deus e sua mão trabalhando para mudar a história.
Os reformadores eram somente instrumentos nas mãos de um Deus soberano e onipotente, e eles sabiam disso e o confessavam livremente. Eles não foram os inovadores ou arquitetos da Reforma. Eles eram servos. “A Reforma deve ser entendida como uma ação que desceu do alto; enquanto sua contraparte, a Contrarreforma, foi uma tentativa de restauração que veio de baixo. A primeira está enraizada no homem que submete a Deus, e o último está enraizado no Deus que se submete ao homem”.
Deus, no entanto, não se submete a nenhum homem. A Reforma Protestante é obra dele e só dele. Por meio dele, ele agiu para restabelecer o poder e a autoridade de sua palavra. Como no período do Êxodo de Israel do Egito, ou no exílio babilônico e até mesmo no advento da encarnação, em todas estas e outras oportunidades Ele manifestou seu poder com um objetivo. Ele é o gênio da Reforma. E esse é o propósito da Reforma.
A reforma acabou?
Com a celebração do aniversário da Reforma, a pergunta “A Reforma terminou”? É frequentemente discutida e debatida. David Wells, autor e teólogo, reportou algumas descobertas interessantes de uma pesquisa feita em sete seminários americanos. Uma destas descobertas é chocante: os seminaristas estão insatisfeitos com a atual situação da igreja. Eles creem que a igreja perdeu a visão e esperam mais do que a igreja lhes tem dado.
Quando paramos para observar o atual cenário do cristianismo moderno, somos obrigados a concordar com eles. Várias condições culturais que infestam a igreja têm sido observadas. O pior deles com certeza é o secularismo. E as duas marcas mais facilmente reconhecíveis da secularização são a exaltação dos números e métodos nas igrejas. O cristianismo está caminhando para o nominalismo e o individualismo. O propósito das igrejas modernas – todas elas – mudou de glorificar a Deus para simplesmente crescimento, admitindo que esse objetivo, quando e se atingido, pode glorificar a Deus.
Alguém certa vez disse: “se o alvo da igreja é crescer, a maneira de obter isso é fazer as pessoas sentirem-se bem. E, quando as pessoas descobrem que há duas maneiras de se sentirem bem, elas abandonam a igreja da qual não precisam mais”.
Por todos os lados há insatisfação com o cristianismo e com a igreja. Isso por um lado é bom. Necessariamente, enquanto não experimentamos uma santa insatisfação com o estado atual das coisas, não podemos plantar as sementes da Reforma. Contudo, a insatisfação somente não é o suficiente. Precisamos de algo mais.
A Reforma fez do evangelho, em vez da organização eclesiástica, o teste do verdadeiro cristianismo. Hoje, no ocidente secular, temos de recuperar o senso de satisfação com o evangelho da graça de Deus, que nos empurra para igrejas que são fiéis à pregação bíblica deste evangelho. E temos de recuperá-lo, particularmente, em nossa vida em conjunto como crentes, em nossas igrejas. A Reforma real é a obra e intervenção do próprio Deus na história, na igreja e no coração do homem. A reforma destrona o homem e coloca Deus de volta em seu devido lugar de supremacia sobre todas as coisas.
Não por acaso, o hino Castelo Forte de Lutero rapidamente transformou-se no hino oficial da Reforma. Sua letra dizia:
Castelo forte é o nosso Deus
Escudo e boa espada
Com seu poder defende os seus, a sua igreja amada
Com força e com furor, nos prova o tentador
Com artimanhas tais, e astúcias infernais
Iguais não há na terra
A nossa força nada faz, estamos nós perdidos
Mas nosso Deus socorro traz e somos protegidos
Defende-nos Jesus, o que venceu na cruz
Senhor dos altos céus, que, sendo o próprio Deus
Triunfa na batalha
Sim, que a palavra ficará
Sabemos com certeza
Pois ela nos ajudará com armas de defesa
Se temos de perder, família, bens, poder
E, embora a vida vá, por nós Jesus está
E nos dará seu reino
Castelo forte é o nosso Deus
(Castelo forte é o nosso Deus)
Esse é o espírito da Reforma, e a Reforma não acabou e não deve terminar nunca. Um dos lemas dos reformadores é: “A igreja reformada sempre reformando”. A mensagem nunca mudou ou jamais vai mudar, nosso coração, entretanto, precisa ser constantemente lembrado da beleza de ser salvo pela fé em Cristo pela graça apresentada nas Santas Escrituras para glória de Deus.
Conclusão
A Reforma, em sua essência, não é uma questão de afirmar os Cinco Solas. Não se trata de afirmar a teologia de Martinho Lutero ou João Calvino. É uma questão de afirmar e abraçar a supremacia de Deus. Trata-se de buscar um relacionamento com o próprio Deus tornado possível através da obra expiatória de Jesus Cristo na cruz. Foi o que aconteceu durante a Reforma Protestante. Esse é o gênio da reforma – e o motivo pelo qual ela continuará até que Deus reine supremo e o homem se submeta totalmente à sua glória, sua palavra e sua autoridade.
Texto adaptado do artigo de Reid Karr publicado com o mesmo título em voltemosaoevangelho.com.
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